terça-feira, 29 de abril de 2008

Navegar nos campos

onde fica o tempo dos que vêm de maio

no relógio de sol dentro do coração dos frutos.

tempo o tempo medido por perecíveis afectos

impossível usurpação: não existe tempo na geografia do desejo

tempo é bem divino

os que vêm de maio olham a brancura

da flor da cerejeira que amortalha

a terra. é tempo de navegar nos campos

remota lavoura, paciente amargura de animal

assombrado com a trovoada

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Abril, Abril

Da alegria

a andarilhar nas ruas,

alegria partilhada, afinal

tão pouco resta: o povo

abriu a mão

e fechou o rosto.


O meu filho tem dez anos

leu o Tintin

que vinha com o jornal

e disse-me: Os soviéticos

são maus. Sorri e fui ver

a silêncio florido.

Em Abril

só magnólia é palavra plena.



In Trinta Poemas Para 30 anos de Abril (antologia) Asa, colecção Pequeno Formato

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Nas avelaneiras

Os que vêm de maio caminham devagar
no bosque, há folhas tenras no carvalhal
nas avelaneiras junto à água e o silêncio enamorado da rola
no ponto mais alto do freixo. os que vêm de maio
trazem agora ramos das cerejeiras
saem assim em cortejo festivo do bosque
iluminam o dia com o suave fogo dos frutos

param no largo, os que vêm de maio. logo as crianças
pressentem a colorida doçura dos ramos

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Última laranja

a memória íntima da terra
num dialecto ainda mais antigo que a palavra
os que vêm de maio conhecem
e a fraqueza das trutas do rio quando a verdura
das margens amortalha de sombra a água limpa
os que vêm de maio fazem colares com açucenas bravas
num secreto jogo de amantes
perturba-os o passo estugado da rês a caminho do morte
é sinal de bátega intensa, capaz de diluir o verde,
que o assobio longínquo dos melros confirma

os que vêm de Maio comem a última laranja da árvore

terça-feira, 15 de abril de 2008

Cerejas

os que vêm de maio trazem giestas
nas mãos. descem pelos montes
assim floridos: no primeiro dia de maio
iluminam a casa com as giestas
gesto contra a fome, dizem os antigos.


os quem vêm de maio comem as derradeiras
laranjas da árvore, enquanto esperam pela
cega paixão das rubras cerejas. às vezes
sentam-se e contam palavras que retiram
devagar dos bolsos. às vezes adormecem
e emigram no rumor da tarde

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Sul

Os livros ardem nas mãos
como a frescura da água
numa tarde do sul

por que digo isto agora
aos que vêm de maio?
Eles não me ouvem
fecharam a janela sobre a manhã

terça-feira, 8 de abril de 2008

O Comum da Terra




Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas.
Quem conheça o sul e a sua transparência
também sabe que no verão pelas veredas
da cal a crispação da sombra caminha devagar.
De tanta palavra que disseste algumas
se perdiam, outras duram ainda, são lume
breve arado ceia de pobre roupa remendada.
Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão
era morada e instrumento de alegria.
Esse eras tu: inclinação da água. Na margem
vento areias mastros lábios, tudo ardia.

Eugénio de Andrade

12 Poemas para Vasco Gonçalves, Ed. Inova, col. O oiro do dia

Um reciário à boleia


Observa o rio enquanto caminha, parece pescador de pluma a traçar mentalmente o lance. “A morada das trutas será sempre a limpidez da água”, diz o homem. E logo entristece, envolto nessa trágica fragilidade de sabedoria antiga. Atravessa a ponte: cessa num círculo de sombra, espessa e balsâmica, que um cedro antigo recorta na estrada. “Os romanos inçaram os nossos rios, traziam de muito longe as trutas em odres. Saberá alguém, no nosso vertiginoso tempo, o que é um odre? A palavra”, continua o homem a pensar, no círculo de sombra, “a palavra: fala comigo, dir-te-ei de que tempo és”. Dá um passo em frente, ainda por dentro da sombra (a alma do cedro?), polegar inclinado: o automóvel afrouxa a marcha, ele mantém a posição do dedo. E, de súbito, o gesto acorda longínquo e inesperado pavor, acorda as palavras reciário, tridente, só depois: arena, a apinhada colorida rumorosa arena.

O homem entra devagar, como se fosse muito velho. O automóvel arranca, veloz. O homem pergunta,

Sabe o que é um odre?

É insensato deitar vinho novo em odre velho: rompe-se o odre, perde-se o vinho,

diz o motorista.

O homem pergunta,

O senhor é padre?

Não, sou gladiador. Obrigado por me ter poupado a vida.

sábado, 5 de abril de 2008

Fogo harmonioso

os que vêm de maio trazem o perfume votivo
das glicínias, fogo harmonioso da terra
nas mãos. Se param a ver a paisagem
ou a secreta paixão das aves, o silêncio se faz raiz
depressa brotam ramos, flores e frutos.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Bestiário para as crianças

Automóvel

Reproduz-se mais do que os ratos

rói a paisagem, viola o íntimo das cidades.

O governo de certos países considera

uma praga este irrequieto bicho.


Homem

animal que aprendeu a marcha

bípede e, depois, a conduzir automóvel


ainda não descobriu o caminho da felicidade.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Digo, a voz

Quem é de Maio conhece palavras
das aves que poisam na verdura da manhã.
Ou será outra coisa, o inaudito da terra
seiva brusca por dentro do corpo.
Digo, a voz: salta a rã do nenúfar
pelo estalido dos passos
assusta a água, levanta a brisa
rumor, no rumor do bosque andarilho.

terça-feira, 1 de abril de 2008

As palavras




As palavras armazenam-se como torrões maduros

São flexíveis à memória são marinheiros em terra

Acontece dizer: levantem-se e caminhem

Mas quem somos e que hábito envergamos?

As palavras entontecem

Quando dispersas levantam rumos vários

José Afonso