segunda-feira, 30 de junho de 2008

Agora é Verão

Já não tenho quarenta anos. Esquivo é o
tempo, espantadiço como as aves.
Verão, agora é verão. Entro na brévia.
Os pardais aturdidos pelo calor abrem
as asas em súplica, o latido sedento
dos cães transpõe a sebe – agita o sono
do gato enrolado na sombra da hidranja.


(in Brévia, ed. Hidra)

sábado, 28 de junho de 2008

O acervo

Em tempos, passou por aqui um homem. Comprava crucifixos, espingardas de carregar pela boca, relógios de bolso se relógios de bolso alguém ainda tivesse herdado. O cavalheiro demorava-se na prosa de alfarrábios e até pelo casco das nossas antigas comédias umas moedas permutou. Em nome e com dinheiro do Estado, desceu à província a reunir acervo. Nós lhe dissemos,

acervo, na nossa terra, nunca houve nos pastos do gado.

E ele sem escarnecer da ignorância, desatou o mal-entendido que as palavras sem memória acirram. Andava a recolher espólio para três museus. Um deles, o museu da palavra, iria iluminar os livros antigos, cascos e outros escritos da mão humana. Envaidecidos por nossa pobreza ser matéria cultural, confessámos que havia um vizinho desajudado do siso: falava dia e noite; se fingia trégua, seus olhos seguiam a infinita lengalenga. E isto perguntámos: poderia esse vizinho, palavra viva, tornar-se acervo. O homem disse: “Peça de museu, mesmo com folga à segunda-feira, bárbara pena se afigura”. Quem condena veste a toga da cor dos corvos ou é Deus, nós nem uma coisa nem a outra podíamos ser. De forma polida, como a pedra que nos libertou da servidão, advertimos: ele se achava, há muito, tolhido na cama e daí se levantaria quando o Senhor o chamasse, o Senhor ou o Filho: experiente a pôr infelizes e outros desamparados a caminhar ledos como gazelas. Que palavras diz o enfermo? Quis saber, a imaginar o sucesso. Espantoso, dissemos nós, ele não junta as letras nem maneja a escrita. Mas pronuncia vocábulos novos como frutos – quem o ouve, colhe a alma das palavras.

Uma vez, no meio da sua tempestade interior, proferiu uma coisa inquietante: que a nossa aldeia iria voar. Como ave pesada, tosca, voaria para lugar nenhum. A alquimia de alar o que nasceu cativo disse ele se chamar energia eólica. Nunca tínhamos ouvido nada assim, um povoado, com seus fogos, almas e reses, a esvoaçar numa imaginação maravilhosa. Guardámos a alma eólica e jogámos no olvido a profecia. Vai daí, logo quis o homem visitar o desajudado. Dissemos, ainda bem: o senhor o absolverá do martírio. A palavra martírio e respectiva alma parecem exageradas, mas se o nosso companheiro não pertencer à restrita irmandade dos mártires, nenhum outro acharemos sob a rosa do sol. Nem come, nem bebe. Mantém limpa a roupa da cama, não gasta a ligeira reforma da Casa do Povo na botica, nem na venda. É um acamado enxuto. Independente.

Antes de ver e ouvir o acamado, íamos a caminho, falou-se da incorruptibilidade da alma,

Da palavra alma,

perguntou.

Da alma do vizinho,

dissemos.

Está morto?

Vivo não está ou parece não estar: mas fala como se tivesse pressa de esvaziar a alma das palavras.

Os olhos devastados de tristeza de um cão preto, sentado na soleira, esperam-nos,

Eis o homem,

dissemos.

Um cão!

Em certas tardes de Junho, torna-se perdigueiro. Não tenha medo.

O cão fala?,

insiste..

O cão é a alma, cheia de palavras inauditas.

Quero ver o homem sem alma.

É desagradável. Imagine alguém sem olhos a sorrir… O senhor vê a alma, que importância tem o resto?

Imóvel, o homem observar o perdigueiro sentado e triste. Aquele silêncio todo fez-me lembrar imagem de caça: o homem era o cão marrado; a alma, o bando das perdizes. E forma-se bátega repentina: chuva grossa, morna, chuva de Maio, que exacerba o cheiro das giestas,

Vou levar o cão,

afirma o homem, pressentindo a noite e os seus medos a descerem os montes.

Se o convencer, é seu.

Levou a alma?

Nem o cão, nem a minha gatilheira… como houvera eu de caçar perdigões ferrados nos matagais sem o Tejo!

Tejo não é nome de perdigueiro.

Também faz parte dos devotos de S. Huberto?

Não, eu não caço. Gosto de repousar os olhos na paisagem… A alma falava verdade. Para já são os montes em redor da aldeia: veja como as grandes hélices ensaiam o voo.

sábado, 21 de junho de 2008

Escrevo o dia

hoje é verão, escrevo o dia
com os olhos. talvez de pouco valha
esta escrita intransferível
hoje é verão
escrevo o dia. estou vivo
sentado na sombra
do estio. sei que não vou morrer, não vou
morrer no outro século

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Bestiário para as crianças

Aranha


Finíssimos silêncios tece
e na rede que tece nunca se deita.
armadilha límpida
com regras de geometria
é a sua casa.

Estranho bicho
a aranha tecelã
que só não sabe fiar a alegria.

terça-feira, 17 de junho de 2008

na sombra dos penedos

*

o meu pai faz hoje oitenta
e oito anos. havemos de ir às trutas
à barragem dos pisões
afagaremos algumas palavras
na sombra dos penedos

é bom ser filho velho

domingo, 15 de junho de 2008

beber da mesma água

*

os que vêm de maio

agora se despedem de mim

partem como as aves no outono

sem um aceno, sem um derradeiro olhar

como se assim fossem eternamente livres

de traçar o destino. os que vêm de maio

alguns conheço: trocámos rosas

bebemos da mesma água

mas agora se despendem

como se temessem as fogueiras de s.joão

a noite de cheiros: memória primordial

e última da terra.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Labirinto azul

*

Não vou falar da transumância

dos infelizes na noite escura

apenas o leve desejo

despe os cabelos. A cinza das palavras

como se tu fosses um anjo nu

com a tristeza aos pés

labirinto azul como a cerveja

da casa das putas. Não não estou

a danificar o lirismo: podia chamar

puta azul e tu dirias verso

sublime! só de efebos subtis

domingo, 8 de junho de 2008

As árvores pensam devagar

*

As árvores pensam devagar
seus sonhos alados atravessam o bosque
as árvores enamoram-se
devagar quem dera ser árvore
salgueiro
sim salgueiro junto à água limpa do rio
ou nespereira à tardinha talvez
madura de pássaros

terça-feira, 3 de junho de 2008

A Mãe não veio e um nobel incompleto

“Este ano não trouxemos A Mãe”, diz o homem que está atrás do balcão da Caminho. O pedido surpreende-o. Célere, tenta remediar. Indica-me outro sítio onde poderia achar o romance. “Na Europa - América, vi lá o Gorki”. Para aí vou e daí de mãos vazias regresso. Os exemplares que trouxeram tinham sido vendidos, para a semana há mais. É o dia inaugural da Feira do Livro do Porto, fracassa a primeira investida.
Digo que voltarei, mas A Mãe que desejava era a da Caminho, tradução de António Pescada directamente do russo, capa, muito bonita, de Henrique Cayatte. Os livros, certos livros, encerram esse fascínio: gostaríamos de os adquirir vezes sem conta como se ainda os não tivéssemos lido. Esquecemos Máximo Gorki por momentos. Uma freira atrás do balcão da Campo das Letras, editora de Jorge Araújo, companheiro de Álvaro Cunhal na clandestinidade, espevita-me um breve sorriso. A paragem, contudo, será mais além, na Livros do Brasil. E os olhos iluminam-se! Uma edição de Os Thibault, o comovente romance de Roger Martin du Gard, na zona do “pague um., leve três”, em bom estado. Não é tarde nem cedo. A edição que tenho em casa está, imagem de alfarrabista, cansada e a letra faz-se miúda.
Outra bola ao poste. Os Thibault estende-se, em escrita rigorosa e imaginativa, por três grossos volumes. Ao Palácio de Cristal, no Porto, chegaram apenas o segundo e o terceiro volumes do escritor francês, Nobel da Literatura em 1937. Pergunto pelo volume de abertura. “O que temos é o que vê aí”.
Passo pelo pavilhão do El Corte Inglès, estreia na Feira do Porto, e não resisto a levar mais uma edição de Platero e Eu. E hei-de voltar outro dia: há uma colecção imensa sobre a Guerra Civil de Espanha a merecer visita demorada. Paro, por fim, na Editorial Estampa. Meto no saco Ladrões de Prazer, poemas arábio-andaluzes, para dar. E aqui, sem pressas nem empurrões (no dia de abertura o Palácio de Cristal parecia uma catedral) revejo livros quase esquecidos. Outras gerações de leitores se fascinaram com eles, agora, quase indefesos, aguardam que alguém os ilumine do silêncio. O romance Natureza Morta, de José Augusto França; Apenas uma Narrativa, de António Pedro, ilustrada pelo autor; Lorca quase todo… quase todos as preços compatíveis à bolsa de quem viva com mais dez euros por dia.
Os livros. Às vezes o destino dos livros é cruel. E volto ao romance A Mãe, escrito há 101 anos, roubo estas palavras de Ribine: “Ajuda-me! Dá-me livros, daqueles que um homem, depois de lê-los, não encontre sossego.”

(publicado no DN (na revista IN), em 31 de Maio)