sábado, 29 de novembro de 2008

A manhã e a neve

novembro
de partida. a neve nos
montes onde nasci
e eu tão longe
dessa súbita alegria juvenil
tu não sabes
tu nunca viste a neve, pássaros
tolhidos, a mão fria a esticar a fisga
tu não sabes nada
não conheces os montes onde nasci
as raparigas a sorrir
no meio das abróteas floridas

Acordar ao som do búzio

A aldeia não acordou ao som do búzio, seguido do grito áspero: Botai-la rês, botai-la rês! A aldeia não existe. E a vezeira, aturdida, se tresmalhou para sempre na névoa. Mas o povo de Vilarinho da Furna não abdica. No fim do Outono, regressa, como quem procura a geografia da infância. Aluvião de melancolia, talvez.
Manhã limpa. Vem a neve depois, tímidos flocos. Pouco antes, na ruela de São João do Campo, esvoaçavam pétalas: a imagem de Nossa Senhora da Conceição saía do pequeno templo, no andor florido, sobre os ombros dos homens de Vilarinho. Não renegam a memória, nem a aldeia acuada no fundo das águas.
Desta vez não foi vizinho a cuidar da festa, tarefa rotativa entre o povo. Nem abriu as portas de casa e sentou à mesa um representante de cada família. Nem teve de subtrair ao rebanho uma boa meia dúzia de reixelos para o almoço dos convidados. Não. A festa em honra da padroeira dos vilarinhos mudou de espaço, só queda a profunda devoção. A terra sagrada de Vilarinho da furna dorme sob as águas, amarfanhada de lama e restos de sonhos. Não a puderam trasladar como as pedras da pequena capela do Bom Jesus, reconstruída no alto de São João do Campo. Desse local, no dia 8 de Dezembro, todos os anos, sai e reentra a procissão da Imaculada Conceição, a santa da guerra.
O estrondo dos foguetes cativa alguns curiosos do antigo – quase todos jovens galegos – com máquina fotográfica. Faltaram os moços das povoações vizinhas (Lindoso, Gerês, Covide, Ermida) que permaneciam aos primeiros afagos da noite. Aí exibiam, arte perigosa, os seus dotes de sedução. Uma aparelhagem sonora, no lugar de concertinas e os cantares ao desafio, atira vozes e músicas estranhas sob o silêncio da manhã. E nenhum vilarinho, enfim, aguarda pela noite. É impossível trasladar o sagrado, Vilarinho jamais poderá ser a sua terra.
Nos anos sessenta, o governador civil de Braga, Santos da Cunha, deu mil escudos do dinheiro do Estado para a construção do museu. Um gesto hipócrita, como muitos outros que este homem encontra ao longa da sua peregrinação. Ele queria salvaguardar a memória da Furna, a memória da aldeia. Perdeu a guerra, é certo, porque é inútil pelejar contra escavadoras e seus dentes luzidios. Ele, todavia, conseguiu guardar a perecível alma da aldeia comunitária no museu.
Quando a catástrofe estava preste a consumar-se, ele escreveu, pedindo ajuda, a Jorge Dias (que anos antes havia apresentado como tese de doutoramento, na Universidade de Munique, “Vilarinho da Furna/Uma Aldeia Comunitária”, e, durante os trabalhos de pesquisa esteve hospedado na casa da sua avó). Escreveu à Gulbenkian. A ideia de recolher objectos e depois fazer um museu, disseram-lhe, era boa. Prometeram-lhe uma máquina fotográfica, capaz de amarrar os últimos dias, os últimos gestos comunitários.
O tempo, como no fim de todas as situações de desgraça, corria mais veloz do que o Rio Homem em dias de enxurrada. A máquina de prender imagens não havia de meio de aportar, talvez por Vilarinho ficar longe, num outro tempo. Desencantado com o conforto de boas intenções, ele vai ao Porto e aí compra a máquina que havia de surripiar os derradeiros momentos de Vilarinho da Furna e do seu povo ao impiedoso desapego da água. “Podem desdenhar da qualidade das fotografias, mas são as melhores da minha vida”. E são, de facto: perturbadora emoção e preto e branco.
Esta terceira pessoa do singular, que andarilha no texto, é Manuel Antunes. Chega de Lisboa para a festa em honra da padroeira dos vilarinhos. Ele é a alma do Museu de Vilarinho da Furna, onde estão expostas as suas fotos e espólio recolhido porco antes do dilúvio final. “As pessoas da aldeia que me viam a recolher coisas velhas, pensavam que eu era maluco. Na verdade, não sabia bem por que fazia aquilo, nem sequer ao certo sabia o que era um museu”.
A festa da Imaculada Conceição acaba com uma reunião dos vilarinhos, a meio da tarde, numa das salas do museu. Debandam depois. E um som misterioso, saído de uma sarronca, golpeia os ares – como se acossasse os lobos antigos para o precipício do fojo.

sábado, 22 de novembro de 2008

[nem uma palavra]

nem uma palavra. dura, áspera, cruel
que fosse. apenas o silêncio a trepar
como glicínia pelo frio de novembro

nem uma palavra, o gume
da despedida. nem uma palavra

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Magnólias

As magnólias mostram os seus esporões. nem tudo
é desagradável em novembro

Melides

Os pinheiros mansos
enlaçam os ramos: devagar afeiçoam
imensa frança que abriga as raízes
da secreta labareda do estio.
por vezes, os pinheiros mansos
extenuados de tanto sul, tanto sol
copiam o rumor impedido
do mar: esvoaçam então esvoaçam
na imobilidade perpétua.
e os que se tresmalham do cardume
em árido silêncio se embrulham
morrem como homens tocados de melancolia

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Bestiário para as crianças

Gavião


No século passado, um poeta
rasurou o g ao gavião.
A partir daí também ele pôde voar
voar com a nova palavra.

domingo, 9 de novembro de 2008

Novembro

novembro
talvez seja o mês cruel
nem o fogo dos dióspiros
espanta a melancolia. volto
na palavra quotidiana
como quem reparte o pão. tu sabes,
como quem partilha o vinho
novo. pela palavra aqueço
as mãos em silêncio pela noite dentro.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O terceiro ciclista

A Papiniano Carlos



Os ciclistas rompem exaustos
na bruma. homens de outro tempo
pedalam no subúrbio libertos do medo
urbano. há um que fuma devagar
enquanto pedala como se quisesse
adensar a bruma. outro traz relógio
no pulso e uma mola afasta as calças
do óleo da corrente. o terceiro ciclista
pedala pedala
pedala: mavioso movimento
na direcção talvez do futuro
deixa a palavra na miséria do subúrbio
nas grandes alamedas
no largo de longínquas aldeias

O ciclista que traz o relógio no pulso
diz: “desperdício, companheiro.
vão pisar as palavras: virá a primavera
não botarão flor!” o terceiro ciclista
mantém o movimento o gesto de semeador
a viagem interminável viagem
na direcção talvez do futuro
sabe que o frágil coração da palavra
é inabalável
imperecível como a vida dos sonhadores.


Árvore, 17 de Outubro de 2008