segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Peixes do rio

os que vêm de maio [breve o pousio
do tempo] acordam lentamente
como semente a sentir o suave
fogo da terra. cessa. a menina que fazia
brincos com as cerejas: cessa.
abandona os companheiros.
mas viagem verde continua, luminosa
pelas colinas. a mulher aprendeu
a frágil escrita florida
das magnólias. voltará: rosas bravas
e peixes do rio, ainda vivos, a saltar no avental.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Madrid, Julho de 1936

À minha frente está o homem sentado. Veste um casaco branco. Na mesa vejo uma garrafa, um copo; a mão esquerda do homem sobre o braço da cadeira. A legenda diz-me: Madrid, Julho de 1936. Por detrás do homem, ao fundo, como numa natureza morta, outro homem fixa o rosto na posteridade. Mas o olhar e o sorriso breve do homem do casaco branco, em pose, alagam a cena. O brilho tímido dos olhos de animal acossado. A garrafa, o copo, a mão no braço da cadeira, a brancura do casaco, o rosto do outro homem ao fundo, o café, todo o café, diluem-se na timidez deste olhar premonitório. De vítima. Preciso de iludir esses olhos, perscrutam-me quando olho a fotografia. Preciso de iludir os olhos: só assim, sem agitar a natureza morta, poderei entrar no mês de Julho de mil novecentos e trinta e seis.
Selecciono um ponto preciso: a mão; a mão esquerda do homem do casaco branco. A fotografia observada desta forma precária, eu sei, perde o equilíbrio. Mas abre-me uma porta (uma janela?). Ao lado da mão, vejo agora uma cadeira vazia. É este o meu exíguo espaço na natureza morta. Entro na foto; sento-me na cadeira vazia, reservada para mim há muitos anos.
O homem do casaco branco não se apercebe da companhia. Mantém o olhar, levemente teatralizado, na direcção da objectiva – como se o fotógrafo estivesse ainda ali. Movo o olhar em redor: a mesma serenidade como quando, há pouco, observava a fotografia do lado de fora.
Como restituir a vida à natureza morta?
Com as palavras, diz-me o homem do casaco branco. E, de repente, abjura o rigor da pose; observa, minucioso, o meu espanto. Bem vindo. A sua mão direita, submersa na foto, emerge devagar: cumprimentamo-nos. Os franquistas vão matar-me no próximo mês de Agosto. Sabias? Não é esse episódio, decerto, que até aqui te traz. Ninguém profana o silêncio de uma fotografia para inquirir a morte. A minha pobre morte. Estás a ver: as palavras devolvem a vida, o movimento - a natureza morta (de que fazemos parte) ilumina-se como uma romã. O homem ao fundo faz um gesto, quase imperceptível, para o empregado (que só agora caminha na foto). Deposita na mesa a moeda; não a vejo, ouço-lhe o som a ressurtir do tampo. Ruído acintoso, comprovativo. Levanta-se, sai de cena. Não o sigo. Atravessará a rua deserta, creio, que cede claridade à fotografia. Não o persigo com os olhos.
Procuro nos bolsos do blusão o gravador; quero-o na mesa, ao lado da garrafa. É impossível prender o silêncio, diz-me o homem do casaco branco. Talvez tenha razão. Devolvo à clandestinidade do bolso o objecto. E para que serve o teatro? Esta a dúvida, afinal, que me levou a ocupar a cadeira vazia como quem entra em casa estranha pela janela. Antes de responder, permite-me duas observações. O meu sorriso é silvestre (já o disse noutra entrevista). Segundo: brilho tímido acha-se nos olhos de gente resignada. Eu sou, tu o disseste, um animal acossado. Sabes porquê? Fico do lado dos que não têm nada; ajudo-os a espavorir a resignação. Ora cá está: o teatro descativa, transforma os sentimentos. Eu sei, tu és do futuro. Sentaste-te na minha mesa, no preto e branco da foto, e não és deste tempo. As minhas arcaicas palavras podem (a)parecer inapreensíveis. Se habitasse o teu tempo, diria o mesmo. Faria o mesmo. Tirania como a de Bernarda Alba (era capaz de se sentar em cima do teu coração e ficar um ano a ver-te morrer...) continua no teu tempo. Adela, a jovem Adela, deixou irmãs em toda a parte, e nenhuma pisou ainda o caminho da felicidade. A busca da felicidade, imprevisto companheiro, é o acto mais revolucionário da História .
Desiludo-te, eu sei. Quando entraste na fotografia, julgaste que terias a entrevista da tua vida. Mais ou menos assim: o medo da morte (lembro: vou ser fuzilado em Agosto de trinta e seis) fez recuar este homem. Renegará os ideais libertários para sobreviver. Não, não traio. Portador de fogo, enfim, o meu destino. Tu sabes, vou morrer. Os livros ficam, as personagens darão de beber à minha voz. Os meus livros, os livros dos outros. Porque tudo vem nos livros, companheiro imprevisto: os avanços sociais, as revoluções... As palavras que acabas de ouvir, disse-as há quatro anos ao povo de minha aldeia, Fuentevaqueros, na inauguração da biblioteca pública. Os livros. Os olhares resignadas não povoam o mundo dos livros.
O empregado de mesa vem na nossa direcção. Deve trazer um copo para mim. Um copo vazio. Ninguém lho pediu, é certo... e eu não posso beber no passado. Aproxima-se, em passo solene: não é um copo que equilibra na bandeja, são lírios!
Por que precipitas o fim? Uma bandeja de lírios a entrar na foto, na cena morta e iluminada, é uma imagem bonita. Mas, caso tivesses observado bem a fotografia, acharias um segundo copo na mesa. Sempre aqui esteve aqui, na natureza morta. Não respondi à pergunta que te fez entrar por uma janela em casa estranha. Não disse tudo, e tu, ao ouvires falar do poder das palavras, quiseste a perfumar a cena. No palco, o poder da palavra é mais forte! Verdadeiro. As personagens que dormitam nos livros, recuperam a voz, os gestos, geram o rosto de quem as diz. Ouve: o fascínio do teatro é esta transumância irreal. Demoníaca transumância, ciciam os franquistas enquanto premeditam a cilada . Porque as personagens – cabiam há pouco num livro de bolso – viajam agora numa carrinha, ou na carruagem do comboio, e vão de povo em povo, de terra em terra, espevitar a rebeldia. Então, o teatro, escola do pranto e do riso, é também uma tribuna livre onde os homens podem ridicularizar morais velhas ou equívocas.
Desiludo-te, não é?
Tu conheces as palavras, a fraqueza das minhas palavras, feridas como veados. Mais tarde ou mais cedo, ouve, na lama dos dias, o homem volta a desenhar o caminho. O teatro vai ajudar essa borrasca. Agora pode entrar em cena, na fotografia de Julho de mil novecentos e trinta e seis, a gabela de lírios na bandeja.
A um poeta nada se recusa. Deseja o silêncio, terá o silêncio. Levanto-me, devagar. A mão esquerda do homem do casado branco pousa no braço da cadeira; a outra imerge na sombra. Dou um passo. Apenas um passo. Desabito a natureza morta.
Do lado de fora, do lado do público, lanço olhar derradeiro. O homem ao fundo voltou à mesa. Olha, cabeça levemente inclinada, o homem do casaco branco. Este cativa, para sempre, o sorriso silvestre. Só o brilho tímido dos seus olhos perturba a serenidade. O olhar de homem acossado. De vítima. Como libertar-me dos seus olhos?
É simples, fecho o livro.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Homem sem terra

O boi era o símbolo da valentia da nossa terra. O boi do povo!, explica o homem que tivera de fugir da sua aldeia, porque a barragem tudo engoliu: casa, sonhos, campos, odores, melancolia. Chegávamos o nosso boi ao boi do povo vizinho. Os animais olhavam-se, marcavam o território. Em redor, o povo quieto e mudo – mas os corações esbracejavam em sobressalto. Então, os bois surgiam, cegos de fúria, estalejavam os cornos. Se a chega fosse leal, turravam um bom bocado, sob a algazarra da gente que incitava o Bonito, que incitava o Malhado! Não havia empate. Um dos bois deixava cair a valentia no campo. Fugia. Por vezes, o vencido afocinhava gravemente ferido. E nem sempre a vitória era pacífica: tudo se esclarecia com meia dúzia de pauladas e outras tantas cabeças a sangrar. Aluta bovina acabou. Na última romaria, disse o homem sem terra, alguns dos nossos antigos habitantes crisparam-se com os antigos vizinhos: os outros eram em maior número, fizeram recuar os nossos. De caçadeiras nas mãos, nessa mesma noite invadiram a aldeia dos outros: esfacelaram , a tiro de zagalote, os fios da electricidade. A escuridão irrompeu como alma penada. Olhe, as equipas regressam ao relvado. Os bois, os bois sem o olhar manso, corrige o homem sem terra.

In O Homem do Saco de Cabedal

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

roupa branca

Hoje vou estender as palavras ao sol.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

viagens de metro

Um pai natal esquecido
continua a subir descolorida
parede no bairro do viso. o nevoeiro
aviva-lhe o vermelho
da roupa. habitar fora
do tempo é uma falsa eternidade.
O metro avança, apaga a imagem.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Provérbios para passar os dias

Um burro carregado de lírios
é um poema de Lorca.

*

Quem tem telhados de vidro
adormece a contar estrelas.