quarta-feira, 29 de abril de 2009

verde mais verde

Cúmplice de Madame Bovary
no metro que atravessa a manhã
mais verde o silêncio das árvores
depois das chuvas

os campos lavrados
pressentem o secreto fogo de maio
verde mais verde
o metro pelo meio do arvoredo

sábado, 25 de abril de 2009

Era Um Redondo Vocábulo

Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa

José Afonso

(poemas escrito da prisão de Caxias)

In Textos e Canções, Relógio D'Água Editores

Felicidade na palma da mão

Houve um golpe de estado, disse a mãe. Eu não sabia o que era um golpe de estado. Mas sabia quando a mãe estava preocupada, quando fugia com o olhar dos nossos olhos. A esconder a tristeza, como se fosse possível cegar a tristeza… Nesse fim de manhã, era um rapaz feliz: tinha pescado uma truta. Descemos ao rio antes do sol nascer; as ervas e os ramos dos arbustos vergavam ainda de humidade – o brilho da noite que devagar se dissolvia na nossa roupa. Iludir as trutas é arte de pescador a sério: com galochas, cacifo de vime, licença de pesca no bolso do blusão verde, cigarro aceso depois de descravar o anzol das guelras da presa. Nessa manhã – eu e quatro companheiros – éramos pescadores furtivos. Em sobressalto. E eu pesquei a truta, no desfazer da corrente!
Por instantes, creio, a natureza parou. Envolvia-me, em silêncio, com esse olhar verde e húmido de manhã primaveril. Só o meu coração recusava amainar (como pode um adolescente reprimir o coração?).E os outros rapazes atravessaram o rio, compreensível inveja agachada por detrás dos sorrisos (desses sorrisos de romã madura); e vieram contemplar o peixe das pintas vermelhas. E eu, predador generoso, permiti-lhes que vissem a truta na palma da mão.
Quando cheguei a casa, trazia um saco de plástico (furtivo não usa cacifo de vime) cheio de felicidade e a truta maior do mundo. A maior do mundo! Houve um golpe de estado, disse a mãe. Fiquei em silêncio, aturdido, a olhar a mãe tecendo a estranha tormenta. Quando pousou o auscultador negro, a mãe parecia mais leve. Caiu o fascismo, disse, sem ponto de exclamação, a mãe. Eu sorri, porque uma réstia de felicidade, da minha felicidade, evadiu-se do saco de plástico e entrou nos olhos da mãe.
Caiu o fascismo, repeti na escola. Houve um golpe de estado. E os meus colegas, incluindo os companheiros de pesca, olharam-me, atónitos – como se eu estivesse a afrontar a professora. Caiu o fascismo, disse com mais coragem, porque guardava no bolso o brilho dos olhos da mãe,
E tu sabes o que é o fascismo?
A voz ecoou na sala, fisgada imprevista. Estremeci. Os olhos dos colegas abraçados a mim: uns em cúmplice socorro; outros a repastarem a minha dúvida. Houve um golpe de estado, senhora professora, disse, sem ponto de exclamação. No bolso, mão aflita impedia a fuga da felicidade (como se a felicidade fosse um grilo assustado).
Só a meio da tarde, os meus colegas e eu próprio começámos a desvendar o enigma das minhas palavras. A aula de Francês (como se chamava o professor que nos fazia perguntas de dentro da televisão?) foi interrompida abruptamente. E apareceu um militar, podia ser nosso irmão mais velho, e pedia-nos serenidade. Aquele recado, cheguei a pensar, seria para a professora: por demorar a engolir o espanto.
Caiu o fascismo, disse.
Arrumem depressa as vossas coisas, disse a professora, como se forte nevão ameaçasse lá fora.
Mas era já o tempo dos lírios. A estação dos colares que fazíamos com as hastes, floridas, das abróteas. Tenros colares para secretíssimas paixões. Saímos a correr, a pisar um mundo novo. E os meus colegas, só os rapazes, formavam um círculo irrequieto à minha volta. Pesquei uma truta! Sim, deste tamanho,
E tem pintinhas vermelhas?
Caiu o fascismo! Disse com ponto de exclamação. Meti a mão ao bolso e não encontrei a felicidade: luzia nos olhos dos outros rapazes.
O dia em que pesquei a primeira truta (pouco maior do que um dedo…) marca a minha vida.
A nossa vida.


(In O Medo Não Podia Ter Tudo, Augusto Baptista \Francisco Duarte Mangas; ed, Campo das Letras, 1999)

terça-feira, 21 de abril de 2009

Os caçadores de maio

os que vêm de maio limpam os instrumentos
da alegria. parecem caçadores que afagam os cães
pesam a pólvora em minúsculas balanças de dois pratos
rebordam cartuchos da casa barral. como se isso fosse
ritual de alquimia capaz de saltar por cima do tempo. os que vêm
de maio bebem chá de erva cidreira, esquecem o tumulto
de amores passados mudam de palavra como as árvores
mudam de folha. daqui a pouco voltam aos caminhos velhos
predadores de paisagens, predadores de passagem
tocados por uma inquietação antiga. e inexplicável.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Velatura

alfaias litúrgicas,
leio no catálogo
de alfarrabista. de repente
a aiveca triangular do arado
movido por vacas de leveza imaterial
sulca um imenso céu maninho.
que sabem os que vêm de maio
da palavra, da velatura do sonho?

terça-feira, 14 de abril de 2009

Arte de partejar

leio de passagem caniçó, codeçoso. topónimos esquecidos no fundo da infância: lembram, de repente, histórias do volfrâmio, de rojos fugidos da Guerra Civil de Espanha. e a arte de partejar no campo, a febre purpúrea do terceiro dia, fatal, quase sempre fatal.

sábado, 4 de abril de 2009

Pelos teus lábios

No Maio como as cerejas pelos teus lábios. Diz o homem do saco de cabedal à rapariga. E a rapariga abandona o largo. A correr, como se fugisse de rude tempestade. Pouco depois, regressam a rapariga, os irmãos e o pai. Caminham lestos, incitados pelo silêncio,
Foi ele!
voz de fogo, voz de fúria.
Pausa breve.
O cerco, e o homem cai por terra, sangue vivo esponta nos lábios. A rapariga, os irmãos (são três) e o pai assim legam o desconhecido. Partem, leves e libertos.
Muito lentamente, o homem se levanta. Sacode as roupas, sacode a dor por gestos mais suaves ainda. Do bolso direito das calças tira o lenço: devagar, o lenço bebe o sangue dos lábios. Do outro bolso sai um cigarro: fuma-o, sozinho, no largo desabitado. Debruça-se, recolhe o saco de cabedal: avança, movimento dolorido, em direcção do nada. Antes de sair do largo (ou da página?), volta-se para mim (silencioso cronista), avisa-me: O narrador protege a personagem, foste tu o instigador do desacato!
Silencioso sou, silencioso fico.
Parado. O homem persiste parado, enxuga ainda os lábios como se os corrigisse. Aguarda, eu sei, uma palavra minha. Por outras aventuras andámos e nunca ninguém lhe fugiu ao respeito. Merece uma explicação, e eu não a sei desencantar. Que terá dito a rapariga à família de ódios silenciosos? Que fogo ancestral espavoriu como animal silvestre? Dos lábios da personagem apenas saiu uma pobre metáfora – e achava-a, erro meu, erro meu, saborosa como fruta da época.

Abril

os cachos da glicínia
dão os primeiros sinais
de despedida. amargo mês
é o abril, que já foi fogo da utopia.