sábado, 30 de novembro de 2013

Lembrança de maio

*

Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.
É tão bom existir!
Seivas, vergônteas, virgens,
tépidos músculos
que sob as roupas rebelam-se.
No topo do altar ornado
com flores de papel e cetim
aspiro, vertigem de altura e gozo,
a poeira nas rosas, o afrodisíaco
incensado ar de velas.
- A santa sobre os abismos -
à voz do padre abrasada
eu nada objeto,
lírica e poderosa.

Adélia Prado

Terra de Santa Cruz, ed. Nova Fronteira, 1981

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Aos vindouros


*
aprendam a ler nas entrelinhas,
nos punhos ígneos e fechados,
na corda, na pedra que nos naufraga
          e no amor sonâmbulo
          e nesta flutuação amarga
de cavalos-marinhos prisioneiros.


                         E julguem,
depois  julguem-nos com dureza.


António Osório

A Raiz Afectuosa, ed. de autor, Abril de 1972

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Diversos són els homes i diverses les parles

*
Diversos são os homens e diversas as falas,
e acordaram muitos nomes para um só amor.

A velha e frágil prata torna-se tarde
parada na claridade sobre os campos.
A terra, com armadilhas de mil finas orelhas,
cativou os pássaros das canções do ar.

Sim, compreende-a e fá-la tua, também,
desde as oliveiras,
a alta e simples verdade da voz prisioneira do vento:
"Diversas são as falas e diversos os homens,
e acordarão muitos nomes para um só amor."

Salvador Espriu
trad. Manuel de Seabra
A Pele de Touro, Publicações Dom Quixote, 1975

domingo, 24 de novembro de 2013

domingo no corpo

*

as tardes de domingo, começam
sair de casa, como se fora para longe...
e voltar a ela, sem vontade de fazer nada.

tenho o domingo no corpo

minha mãe prepara a feijoada com solas para o almoço

meu pai dorme na tarde para a semana inteira
e ressona alto

as vacas e seu cheiro entranham-se-me
minha mãe tira leite, mais cedo que o habitual

e adormeço num silêncio quente

gosto de não existir neste tempo

meu pai, abeira-se de minha mãe. todos quietos.

eu não entendo nada.

talvez, por isso, pereça
a poesia

Aurelino Costa

Domingo no Corpo, Deriva Editores

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Lenha verde

*
a mãe desaprendeu a fala.
a mãe cativa, só o verde
dos olhos me aperta
e murmura como se eu fosse
ainda um rapazinho
desavindo com o sono.


digo, mãe
mãe, vou cortar lenha verde
zangarinho e alecrim
na mata das dornadinhas
faremos uma fogueira pelo s. joão.


O Primeiro Dia
pequena antologia da mãe na poesia portuguesa
escolhida por José da Cruz Santos
ed. Modo de Ler

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Encontro


Da árvore vergada
chamei
pelo nome o peixe irado.
Tracei à volta da lua branca
uma figura, alada.
Veio-me o sonho do caçador
que sonha cobrir a presa.

Castelos de nuvens sobre o rio,
é a minha voz,
luz de neve sobre as florestas,
é o meu cabelo.
Pelo céu sombrio
cheguei,
erva na boca, a minha sombra,
encostada à cerca de madeira, disse:
Leva-me de volta.

Johannes Bobrowski

Como um respirar, ed. Cotovia
Trad. João Barrento

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Não sei nada




         Conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar,
diria que sou um domador de  palavras. Mas só eu – eu e os
meus irmãos – sei em que medida sou eu que sou domado
 por elas. A iniciativa pertence-lhes. São elas que conduzem
o meu trenó sem chicote, nem rédeas, nem caminho deter-
minado antes da grande aventura.
        Sim. Conheço as palavras. Tenho um vocabulário próprio.
O que sofri, o que vim a saber com muito esforço fez inchar,
rolar umas sobre as outras as palavras. As palavras são seixos
que rolo na boca antes de as soltar. São pesadas e caem. São o
contrário dos pássaros, embora “pássaro” seja uma das pala-
vras. A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida
não  interessa. Alguém que me procure tem de começar – e de
se ficar – pelas palavras.  Através das várias relações de vizi-
nhança, entre elas estabelecidas no poema, talvez venha a
saber alguma coisa. Até não saber nada, como eu não sei.

Ruy  Belo

Obra Poética, volume 1
Editorial Presença, 1981

terça-feira, 5 de novembro de 2013

As chuvas

os estorninhos outra vez
em bando pelo meio da névoa
que penúria tão funda os arrasta
como o povo do nosso tempo?

povo, povo onde deixaste o fogo libertário?

os estorninhos, dizia
e os choupos do caminho
perdem o frenesim das folhas
tristes quedam no afago da chuva

sábado, 2 de novembro de 2013

árvore





apaga o rasto das palavras

ensina o silêncio a ser árvore
da primavera audaz cheia de devir.