quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Greguerías




*
A única pessoa que muda de verdade a face
do planeta é aquele que lavra modestamente o seu terreno

Ramón Gómez de la Serna

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Greguerías

*
O arco-íris é a fita que a natureza põe depois de
ter lavado a cabeça.
*
As flores sem cheiro são flores mudas.

*
Ramón Gómez de la Serna
Greguerías
Trad. Jorge Silva Melo
Assírio & Alvim

domingo, 22 de novembro de 2015

E SE FOSSES TU?



*

Os livros aparecem por acaso. Falo por mim. Esse acaso aplica-se ao Jacarandá, o último;  ou a Diário de Link, o inicial. Um romance ou  uma novela, na sua construção, é como o mais breve poema: há um momento que no vazio, na escuridão, surge a centelha. Ao certo, esse fragmento de fogo, não sei donde provem. Esse friccionar de pedras pode ser uma palavra apenas, uma conversa de café, uma memória incompleta. Ou seja,  a todo o momento pode saltar a faúlha – e a partir daí fica-se preso, a faúlha há-de ser labareda. Fogo vivo.
Certa vez, Germano Silva  falou-me de uma brévia num antigo mosteiro, algures na cidade do Porto. Dessa conversa, só uma palavra guardei. Brévia. Eu desconhecia a palavra,  nunca, por certo, a teria ouvido ou lido – mas, talvez pela proximidade a certas práticas beneditinas, era-me familiar. Tão familiar como mãe, como casa, como a sombra no verão. A repousante brévia transportava “o mecanismo do fogo”: em pouco dias, sempre a eito, como os camponeses antigo a evitar o sol inclemente, escrevi  Brévia. Um livrinho de poemas que distribuí por alguns amigos.
Com o Diário de Link, romance sobre a aldeia afogada de Vilarinho da Furna, a chispa da pederneira veio numa imagem. Um irmão meu trabalhava para empresa que construiu a barragem, e realçou a coragem de um dos habitantes: esse vilarinho recusou sair, ficou só, na sua casa, enquanto a água do rio impedido pelo paredão subia devagar:  a água atingiu o rés do chão, as cortes do gado, continuaria o movimento ascendente  como uma sombra a amarinhar na parede, e descobriu o homem, Profanou-lhe o espaço. Não sei se foi o resistente a pedir auxílio, ou se as autoridades tomaram a decisão de o desviar da morte. A imagem que eu fiquei (na altura teria 11,12 anos), a que guardava o fogo no meio do suave diluvio foi outra: quando o barco chegou para resgatar o homem, a mesa da cozinha boiava nas águas. Mesa é uma palavra muito forte, a tosca mesa de carvalho, onde a família desse pobre vilarinho repartira a penúria. Anos mais tarde, a imagem  da mesa cativa sobre as águas prisioneiras levar-me-ia à escrita de Diário de Link.
No final dos anos noventa, Adalberto Sampayo, artista plástico e antigo repórter gráfico de O Primeiro de Janeiro, falou-me vagamente da prisão, no Porto, de um grupo de refugiados espanhóis. Quis saber, abusando da sua memória de velho, mais do episódio. O meu amigo Sampayo lembrava-se de pouca coisa: teria sido algures nos anos quarenta, e os espanhóis pertenciam a um grupo clandestino que reunia numa garagem, na Rua de Santa Catarina. Na mesma rua onde O Janeiro, num belo palácio, hoje um centro comercial, estava instalado.
 Na altura eu estava a preparar um trabalho sobre os cinquenta anos do massacre a refugiados republicanos da Guerra Civil de Espanha, praticado pela GNR e pela Guardia Civil, na aldeia de Cambedo,  Chaves. Haveria alguma relação entre Demétrio Alvarez, o único guerrilheiro sobrevivente de Cambedo, e os galegos presos no Porto? Talvez não. Tempos depois, num alfarrabista da cidade, encontrei Memórias de um Inspector da PIDE, e o seu autor, Fernando Gouveia, a dada passo, para dar consistência à tese de diabolização do Partido Comunista, faz emergir o caso dos “bandoleiros espanhóis” detidos no Porto, e precisa a data: Maio de 1940; num gesto  de distanciamento, toma como suas as palavras do Jornal de Notícias – que   destaca “o misterioso crime” ocorrido na Rua do Bonjardim. A partir daí, consultei as edições do  Jornal de Notícias  e do Diário de Notícias da época. E  conheci um lado da história: o lado que a Ditadura permitiu sair, na imprensa, do assassinato do “misógino intransigente”, assim  retrata o JN a vítima – um velho proprietário e capitalista portuense.
A centelha irrompe, como disse, quando menos se espera. A sua tradução na escrita por vezes demora anos. Depois da consulta dos jornais, começava o trabalho do Jacarandá. Ouvi alguns antigos presos políticos, li as memórias de outros, reli uma das edições do tempo de clandestinidade de Se Fores Preso, Camarada, que o Jorge Sarabando me emprestou. A edição que eu li, datada de 1972, e tem como título Não Falar na Polícia - Dever Revolucionário. Reli “Mi Guerra Civil Española”, de George Orwell, talvez o mais lúcido dos autores que escreveram, ainda a quente, sobre o acontecimento.  Li (ou já tinha lido) outras obras relacionadas com a clandestinidade comunista, como Relatos da Clandestinidade – O PCP Visto por Dentro, de J.A. Silva Marques, que havia sido, descobri mais tarde, do Jorge Sarabando.
Como parece ser óbvio,  quis consultar o processo do julgamento do Caso Bonjardim. Os acusados, os  três galegos, os irmãos Alvela,  mais onze portugueses ligados ou próximos do Partido Comunista, foram julgados no Tribunal Militar Especial Político, no Porto, em Março de 1941. O processo deveria repousar no Arquivo Histórico Militar, em Lisboa. Não se encontrava aí, embora no mesmo arquivo estejam  processos anteriores em que aparecem os nomes de alguns dos acusados do Crime do Bonjardim. Só depois do livro escrito e publicado soube, através do meu amigo Bruno Monteiro,  que, afinal, o processo não estava perdido, ou agachado em casa particular.
 Para espevitar a centelha, verdade seja dita, descarecia da consulta do processo,  as notícias dos jornais deram-me informação suficiente. Numa obra ficcional, a matéria informativa ou a falta dela é sempre suficiente. É isso que deveras me entusiasma na escrita, reinventar uma realidade a partir da palavra. A linguagem entra no domínio do "indizível" – para usar um vocábulo dos poetas dos anos oitenta – e partilha essa 'descoberta'.
 Para o Jacarandá, fui buscar os nomes do inspector da PVDE/ PIDE e de outros torturadores a um antigo livro da malvadez portuguesa: Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto; no romance A Mãe,  de Máximo Gorki,  encontrei os nomes de outras personagens; outros, por fim, nasceram e cresceram já baptizados no decorrer do processo criativo. O imaginário jacarandá, que acaba por dar título à obra, surgiu de forma inesperada – alguma coisa terá acontecido, mas existem mistérios que ultrapassam o narrador. A ficção faz-se de muitas pequeninas coisas reais que nós vivemos, que outros viveram e nos contaram, e de outras que não vivemos e ninguém as terá contado. Como o Jacarandá, os jornalistas do anos 40 que aparecem no livro, imaginativos (mais imaginativos creio que os jornalistas de hoje), todos eles são uma invenção. Personagens reais só os irmãos Alvela, os três galegos, fugidos da Guerra Civil de Espanha, e no entanto deles apenas conhecia o nome e a pesada condenação que sofreram.
Chegado aqui, uma pergunta se impõe: o que me levou a escrever o livro? Ou, para manter a imagem da centelha,  por que soprei nas cinzas do Crime  do Bonjardim? Eu gostava de perceber o medo, se o medo iria ter tudo o não. Por isso, o medo aparece ao longo do livro como um animal. Um animal silencioso, um animal indefinido, de reacção imprevisível. E aqui, para se testar o animal, surge a tortura.
Quando cheguei à redacção do jornal O Primeiro de Janeiro, meados dos anos oitenta,  contaram-me uma história amarga de um jornalista mais velho, de quem me tornaria amigo. Ele teria (o teria é meu, quem me informava era afirmativo), ele teria rachado numa passagem pela Rua do Heroísmo, pela Pide,  e teria denunciado outro camarada de profissão – até me disseram o nome da “vítima”, Pedro Alvim. Nunca falei do assunto com o meu amigo, alegado delactor, que era do PCP e continuava quando o conheci. Ele também nunca aludiu a esse seu nebuloso passado. Mas vi nele um homem ferido pela amargura.
Que a animal é o medo?
A dada altura, em privado, o narrador pergunta: E se fosses tu? Suportarias a tortura, cumpririas o dever revolucionário de não falar na polícia? O medo, confessa Martí –, o controleiro nesta história, que rachou perante o cavalo marinho –, o medo irrompe “animal dominador. Julguei que o domava, abarbatou-me. O medo é um animal estranho. Protege e rouba a coragem, no seu lugar, no lugar da coragem, fica o vazio. Sou o homem mais infeliz à face  da terra, tenho vergonha de estar vivo”.
O outro camarada, que cumpria o dever revolucionário, suportando os mais duros suplícios, frente ao ex-controleiro, estando os dois presos na sede da Pide, pergunta:
“Torturam-te muito?
Muito. O medo apossou-se de mim.
E devorou-te.
Devorou-me, esse animal silencioso.
Que deste tu em troca?
A minha dignidade.”

Este livro é dedicado a quem ousou afrontar a ditadura. Um pequeno gesto de gratidão aos que foram brutalmente torturados e não cederam. E também a alguns que não suportaram a dor e involuntariamente terão traído. O  medo, afinal o medo não teve tudo.
Um jacarandá,  mesmo crescendo na parede da cela, apresenta sempre muito ramos. Falei-vos de um – há outros a descobrir.

* Texto lido na Universidade Popular do Porto, dia 2O de novembro,
no debate "O medo não pode ter tudo" a partir do romance Jacarandá, com a participação de Cristina Nogueira e Bruno Monteiro.


sábado, 31 de outubro de 2015

(carta de minha mãe)

*

com as trovoadas de maio comeremos peixe do rio
abandona a arte da subtileza e traz assobios para os cães.
os marmeleiros já têm melros e outros frutos
as mãos, que as tuas mãos regressem de monte a monte

Rui Duarte Mangas

sábado, 17 de outubro de 2015

[Quero decir paixón]


*
   Un levián orballo, unha ledicia
e vai nacendo este milagre novo,
este medrar preciso do teu peito,
esta quentura fonda ou esta lúa
que esbara pola bris do meu ollar.


  Com feble luz tremente, eu tezo fios
pra cántigas de amor, claras e inxeles:
e vou prendendo vivas labaradas
no agarimo profundo do teu seo.


  Quero decir paixón, e digo noiva
con verba labourada en fino labio,
digo mencer tranquilo, serán quedo,
anceio de durmir no teu acougo.

Antón Avilés de Taramancos
O Tempo no Espelho
 ediciós do Castro

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

[corazón habitado]


MADRE: quiero olvidar
esta creencia sin descanso. Nadie
ha visto un corazón habitado:
por qué este pensamiento irreparable,
esta creencia sin descanso?

Estar desesperado,
estar químicamente desesperado,
no es um destino ni una verdad.
Es horrible y sencillo
y más que la muerte. Madre:
dame tus manos, lava
mi corazón, haz algo.


Antonio Gamoneda
Antología poética, Alianza Editorial

domingo, 11 de outubro de 2015

DECIR QUE NO



Ya lo sabemos
es difícil
decir que no
decir no quiero

ver que el dinero forma um cerco
alredor de tu esperanza
sentir que otros
los peores
entran a saco por tu sueño

ya lo sabemos
es difícil
decir que no
decir no quiero

no obstante
cómo desalienta
verte bajar de tu esperanza
saberte lejos de ti mismo

oírte
primero despacito
decir que sí
decir sí quiero
comunicarlo luego al mundo
com un orgullo enajenado

y ver que um día
pobre diablo
ya para siempre pordiosero
poquito a poco
abres la mano

y nunca más
puedes
cerrarla.

Mario Bendedetti
Antologia poética, Alianza Editorial

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

ACORDAI


Acordai
acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raiz

Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações

Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!

José Gomes Ferreira

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

DA LIBERDADE INTERIOR


*

Curvei-me
para beijar
as negras e bem polidas botas
do nosso amo
e então ele disse:
mais!

Curvando-me mais
senti
com prazer
a resistência
da minha coluna
que não queria estar dobrada

Feliz, verguei-me ainda mais
reconhecido ao nosso amo
por esta descoberta
da minha dignidade
e força
interiores

ERICH FRIED

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Enquanto há força

 *

SONETO DO TRABALHO

Das prensas dos martelos das bigornas
das foices dos arados das charruas
das alfaias dos cascos das dornas
é que nasce a canção que anda nas ruas.


Um povo não é livre em águas mornas
não se abre a liberdade com gazuas
 à força do teu braço é que transformas
as fábricas e as terras que são tuas

Abre os olhos e vê. Sê vigilante
a reacção não passará diante
do teu punho fechado contra o medo.

Levanta-te meu povo. Não é tarde.
Agora é que o mar canta é que o sol arde
pois quando o povo acorda é sempre cedo.

José Carlos Ary dos Santos



ps: com a ajuda dos 'velhos' neo-realistas também daremos a volta à mega-encenação que a direita portuguesa (e europeia, farinha do mesmo saco) está a fazer nesta campanha.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O escritor que cuidava a memória



Nos lançamentos dos seus livros no Porto, mesmo não sendo ele apresentador televisivo ou personagem das revistas cor de rosa, juntava pequenas multidões. E era uma grande festa. Como nunca renegou  a matriz  camponesa, de andarilho silvestre, do homem bom rente à natureza, a festa terminava, altas horas da noite, com pão, vinho e presunto.  Pão, vinho e presunto vindos da geografia da infância. Do planalto do Gostofrio, lugar real e imaginário onde se movem todas as personagens da singular obra literária que nos deixa.     
   Num gesto bíblico, Bento da Cruz quando saiu a primeira vez da aldeia de Peirezes, Montalegre, rumo ao longe, rumo à grande cidade, antes da curva da estrada, que apaga a imagem primordial, não  se voltou para a rever. Seguiu caminho, levava consigo, resguardado no lugar mais íntimo, esse mundo amargo e maravilhoso. Inútil, pois, o olhar emocionado de quem se despede. Partiu para ser monge beneditino, chegaria a noviço, mas trocaria a vida religiosa pela medicina. A escrita, amante irregular (“só escrevo aos fins-de-semana”), essa, acompanhá-lo-ia sempre.
    Na geografia da infância, a mesma que Frei Bartolomeu dos Mártires calcorreara em tempos remotos, havia de desenhar o espaço mítico, exíguo e infinito, capaz de acolher  a sua obra ficcional. A partir das terras de Barroso, Bento da Cruz  devolve-nos, em O Lobo Guerrilheiro,  a memória da guerrilha galega antifranquista, terminada a Guerra Civil de Espanha. Conheceu, muito novo, alguns dos “fugidos” à barbárie franquista, dar-lhe-ia mais tarde a claridade da sua escrita límpida, áspera e melodiosa. Genuína como o pão, o vinho e o presunto oferecido aos leitores, trasmontanos e não só, como é evidente, que enchiam o salão nobre do Ateneu Comercial do Porto, ou outros auditórios mais amplos, nos lançamentos dos livros. Momento de festa e de partilha desse pequeno mundo que o candidato a monge haveria de perseverar  a vida toda.
No espaço imaginário da narrativa de Benta da Cruz cabem as memórias dos guerrilheiros galegos ou o amor  entre mulheres. Como o da Zé e da Lua, duas personagens de Filhas de Loth, um dos romances mais provocadores, publicado em 1967, sendo reeditado, várias vezes, a partir dos anos oitenta. Como observara Urbano Tavares Rodrigues, no prefácio ao livro Contos do Gostofrio (1973), as origens do ruralismo de Bento da Cruz estão fundamentadas numa experiência direta, “vivida e observada, no que concerne ao trabalho, ao amor, à amizade, à ambição, às carência mais duras, em suma à complexa maranha das relações do homem com a natureza e com os animais. Relações todas elas fortemente sensualizadas e sobre as quais o autor se coíbe de lançar um julgamento moral”.
   O romance Planalto em Chamas (1963) marca a sua estreia. Da longa carreira literária, sempre tolhida pelo ofício diário de médico, ficam mais de 25 títulos, entre contos, romances, biografia, crónicas, e trabalhos etnográficos como  O Boi do Povo, editado em 2009 pela Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. “Todos os meus livros falam das chegas de bois”, da luta entre dois bois em campo aberto. “Era uma coisa muito característica do Barroso”. Agora – dizia-me numa entrevista em 1989 – “está adulterada, vulgarizaram a chega. Antigamente era uma coisa séria! Tinha um ritual próprio: os bois eram da povoação, toda a gente da aldeia se empenhava no seu boi! Agora não; os bois são particulares… praticamente só o dono do animal pode ficar emocionado e torcer pelo campeão”. Admirava Camilo,  um dos autores portugueses que lia “com prazer e com proveito”. Uma das suas últimas obras foi, precisamente, um ensaio sobre o autor de Amor de Perdição nas andanças pelo espaço imaginário de Bento da Cruz, publicado pela Âncora Editora há dois anos – Camilo Castelo Branco Por Terras de Barroso e Outros Lugares assim se chama o livro, que assinalou os 50 anos de vida literário do escritor.
Bento Gonçalves da Cruz nasceu na aldeia de Peirezes, Montalegre, em 1925. Faleceu na semana passada [25 de agosto], aos 90 anos.  Nos seus livros, vários deles distinguidos, há, como afirmara Urbano Tavares Rodrigues, “incontestável denúncia da miséria, de todas as misérias, de uma das mais frustes regiões do nosso país”. A grandeza do autor de O Retábulo das Virgens Loucas não se fica, todavia, por esse “compromisso radical com a verdade”.
 Conheci Bento da Cruz há mais de trinta anos. O tempo. A serenidade do tempo é cruel mão invisível, sempre espalha marcas por onde passa. Falo do tempo para lembrar a força maior do escritor, avesso à efémera claridade mediática, que alguns em vão tentaram empurrar para o silêncio. Ele foi um escritor do seu tempo. Do nosso tempo. Parte substancial do tempo mais negro do século vinte português entra bruscamente na sua obra e perdurará, estou certo, nos tempos que hão-de vir. Porque, melhor do que ninguém, o autor de A Loba (Prémio de Narrativa Galega e Portuguesa, em 1999) cuidou a memória como matéria perecível. E na memória há palavras privadas de afeto. Precisam de respirar na página, porque a rapidez do quotidiano padronizado as esquece – e palavra esquecida nem lugar lhe é destinado em língua morta.
A obra de Bento da Cruz , sem dúvida, dá abrigo de alguns dos nossos mais genuínos vocábulos – que em lenta aluvião se dirigiam ao olvido – renascidos, devolvidos à comunidade falante, através de espantosas personagens que são outras das memórias levantadas do chão. O paciente ofício de limpar e enxugar a palavra – perdida nos matagais por pastores enamorados, contrabandistas esquivos ou outros transumantes em fuga que a roda do tempo amarfanhou – surge como uma das dádivas do escritor ao nosso tempo, às gerações vindouras. À Língua Portuguesa.
O diálogo vivo, musical, depurado (dir-se-ia de guião cinematográfico) irrompe como outro dos contributos do autor  à nossa Literatura. É a fala genuína do povo, um povo concreto – marcado pela penúria, acossado por senhores terrenos e temente a Deus – que ao longo de séculos talhou a paisagem agreste.
Um povo, no entanto, capaz de grandes gestos de humanidade mesmo em situações adversas. A solidariedade dos humildes, da pobre gente, será a mais sincera de todas.
Os livros de Bento da Cruz asseguram essa memória (matéria perecível) do povo de Barroso. A dignidade do povo dos grandes gestos de humanidade. O povo de Barroso que soube acolher os “fugidos”, os refugiados, quando “os maus ventos” uivavam do outro lado da fronteira. Uma memória da Guerra Civil de Espanha, revivida ou reescrita do lado de cá, é outro dos legados aos homens do nosso tempo e às gerações do porvir. Os dedos de uma mão chegam para contar os escritores que, antes dele, ousaram atear esse passado sangrento. O autor de Planalto em Chamas não temia a memória, ele conhecera, como já disse, guerrilheiros rojos e outros “fugidos”. Homens acossados pelos franquistas e pelos fascistas portugueses, homens sem pátria, com os sonhos libertários impedidos, privados de quase de tudo. Essa memória, enfim, jamais poderia ser olvidada. E não foi. Bento da Cruz, ao evocar a Guerra Civil de Espanha, trouxe à claridade a dignidade do seu povo. A dignidade em tempos conturbados é um tesouro incalculável: guardar silêncio, não denunciar a presença de “bandoleiros” (as autoridades portuguesas e os jornais designavam assim os refugiados de Espanha) era crime, e passagem certa pelas mãos dos torturadores da Pide, da Rua do Heroísmo, no Porto. E houve, por muitas aldeias barrosãs, homens e mulheres que não traíram: deram abrigo, pão,  vinho e presunto a esses companheiros transidos. Ao transportar para a nossa Literatura a heroica dignidade das gentes da sua terra, nas décadas de trinta e quarenta do século vinte, Bento da Cruz distinguiu todos os portugueses que recusaram a tirania. E aqui reside outra originalidade do seu trabalho literário: voluntariamente localizada, é certo, mas os sentimentos são apátridas. Bento da Cruz foi o escritor do Barroso, um grande escritor português. 
texto publicado no JL

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

imigrante




o que passa no mediterrâneo, a indiferença pelo desespero dos refugiados,
pela morte de crianças, traz  à  lembrança o ghetto de Varsóvia e outros horrores da guerra.
a europa nada aprendeu com a história. assistimos ao naufrágio dos direitos humanos,
ao pouco que restava da democracia burguesa.