quarta-feira, 30 de dezembro de 2015
Greguerías
*
A única pessoa que muda de verdade a face
do planeta é aquele que lavra modestamente o seu terreno
Ramón Gómez de la Serna
quarta-feira, 9 de dezembro de 2015
Greguerías
*
O arco-íris é a fita que a natureza põe depois de
ter lavado a cabeça.
*
As flores sem cheiro são flores mudas.
*
Ramón Gómez de la Serna
Greguerías
Trad. Jorge Silva Melo
Assírio & Alvim
O arco-íris é a fita que a natureza põe depois de
ter lavado a cabeça.
*
As flores sem cheiro são flores mudas.
*
Ramón Gómez de la Serna
Greguerías
Trad. Jorge Silva Melo
Assírio & Alvim
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Ramón Gómez de la Serna. Greguerías
domingo, 22 de novembro de 2015
E SE FOSSES TU?
*
Os
livros aparecem por acaso. Falo por mim. Esse acaso aplica-se ao Jacarandá, o último; ou a Diário
de Link, o inicial. Um romance ou uma
novela, na sua construção, é como o mais breve poema: há um momento que no vazio,
na escuridão, surge a centelha. Ao certo, esse fragmento de fogo, não sei donde
provem. Esse friccionar de pedras pode ser uma palavra apenas, uma conversa de
café, uma memória incompleta. Ou seja, a
todo o momento pode saltar a faúlha – e a partir daí fica-se preso, a faúlha
há-de ser labareda. Fogo vivo.
Certa
vez, Germano Silva falou-me de uma
brévia num antigo mosteiro, algures na cidade do Porto. Dessa conversa, só uma
palavra guardei. Brévia. Eu desconhecia a palavra, nunca, por certo, a teria ouvido ou lido –
mas, talvez pela proximidade a certas práticas beneditinas, era-me familiar.
Tão familiar como mãe, como casa, como a sombra no verão. A repousante brévia transportava “o mecanismo do
fogo”: em pouco dias, sempre a eito, como os camponeses antigo a evitar o sol
inclemente, escrevi Brévia. Um livrinho de poemas que distribuí por alguns amigos.
Com
o Diário de Link, romance sobre a
aldeia afogada de Vilarinho da Furna, a chispa da pederneira veio numa imagem.
Um irmão meu trabalhava para empresa que construiu a barragem, e realçou a
coragem de um dos habitantes: esse vilarinho recusou sair, ficou só, na sua casa,
enquanto a água do rio impedido pelo paredão subia devagar: a água atingiu o rés do chão, as cortes do
gado, continuaria o movimento ascendente como uma sombra a amarinhar na parede, e descobriu
o homem, Profanou-lhe o espaço. Não sei se foi o resistente a pedir auxílio, ou
se as autoridades tomaram a decisão de o desviar da morte. A imagem que eu
fiquei (na altura teria 11,12 anos), a que guardava o fogo no meio do suave diluvio
foi outra: quando o barco chegou para resgatar o homem, a mesa da cozinha boiava
nas águas. Mesa é uma palavra muito
forte, a tosca mesa de carvalho, onde a família desse pobre vilarinho repartira
a penúria. Anos mais tarde, a imagem da mesa
cativa sobre as águas prisioneiras levar-me-ia à escrita de Diário de Link.
No
final dos anos noventa, Adalberto Sampayo, artista plástico e antigo repórter
gráfico de O Primeiro de Janeiro,
falou-me vagamente da prisão, no Porto, de um grupo de refugiados espanhóis. Quis
saber, abusando da sua memória de velho, mais do episódio. O meu amigo Sampayo
lembrava-se de pouca coisa: teria sido algures nos anos quarenta, e os
espanhóis pertenciam a um grupo clandestino que reunia numa garagem, na Rua de
Santa Catarina. Na mesma rua onde O
Janeiro, num belo palácio, hoje um centro comercial, estava instalado.
Na altura eu estava a preparar um trabalho sobre
os cinquenta anos do massacre a refugiados republicanos da Guerra Civil de
Espanha, praticado pela GNR e pela Guardia Civil, na aldeia de Cambedo, Chaves. Haveria alguma relação entre Demétrio
Alvarez, o único guerrilheiro sobrevivente de Cambedo, e os galegos presos no
Porto? Talvez não. Tempos depois, num alfarrabista da cidade, encontrei Memórias de um Inspector da PIDE, e o
seu autor, Fernando Gouveia, a dada passo, para dar consistência à tese de
diabolização do Partido Comunista, faz emergir o caso dos “bandoleiros
espanhóis” detidos no Porto, e precisa a data: Maio de 1940; num gesto de distanciamento, toma como suas as palavras
do Jornal de Notícias – que destaca
“o misterioso crime” ocorrido na Rua do Bonjardim. A partir daí, consultei as
edições do Jornal de Notícias e do Diário de Notícias da época. E conheci um lado da história: o lado que a
Ditadura permitiu sair, na imprensa, do assassinato do “misógino
intransigente”, assim retrata o JN a
vítima – um velho proprietário e capitalista portuense.
A
centelha irrompe, como disse, quando menos se espera. A sua tradução na escrita
por vezes demora anos. Depois da consulta dos jornais, começava o trabalho do Jacarandá. Ouvi alguns antigos presos
políticos, li as memórias de outros, reli uma das edições do tempo de
clandestinidade de Se Fores Preso,
Camarada, que o Jorge Sarabando me emprestou. A edição que eu li, datada de
1972, e tem como título Não Falar na
Polícia - Dever Revolucionário. Reli “Mi Guerra Civil Española”, de George
Orwell, talvez o mais lúcido dos autores que escreveram, ainda a quente, sobre
o acontecimento. Li (ou já tinha lido)
outras obras relacionadas com a clandestinidade comunista, como Relatos da Clandestinidade – O PCP Visto por
Dentro, de J.A. Silva Marques, que havia sido, descobri mais tarde, do
Jorge Sarabando.
Como
parece ser óbvio, quis consultar o processo
do julgamento do Caso Bonjardim. Os acusados, os três galegos, os irmãos Alvela, mais onze portugueses ligados ou próximos do
Partido Comunista, foram julgados no Tribunal Militar Especial Político, no
Porto, em Março de 1941. O processo deveria repousar no Arquivo Histórico
Militar, em Lisboa. Não se encontrava aí, embora no mesmo arquivo estejam processos anteriores em que aparecem os nomes
de alguns dos acusados do Crime do Bonjardim. Só depois do livro escrito e
publicado soube, através do meu amigo Bruno Monteiro, que, afinal, o processo não estava perdido, ou
agachado em casa particular.
Para espevitar a centelha, verdade seja dita, descarecia
da consulta do processo, as notícias dos
jornais deram-me informação suficiente. Numa obra ficcional, a matéria
informativa ou a falta dela é sempre suficiente. É isso que deveras me
entusiasma na escrita, reinventar uma realidade a partir da palavra. A
linguagem entra no domínio do "indizível" – para usar um vocábulo dos
poetas dos anos oitenta – e partilha essa 'descoberta'.
Para o Jacarandá,
fui
buscar os nomes do inspector da PVDE/ PIDE e de outros torturadores a um antigo
livro da malvadez portuguesa: Peregrinação,
de Fernão Mendes Pinto; no romance A Mãe,
de Máximo Gorki, encontrei os
nomes de outras personagens; outros, por fim, nasceram e cresceram já
baptizados no decorrer do processo criativo. O imaginário jacarandá, que acaba
por dar título à obra, surgiu de forma inesperada – alguma coisa terá
acontecido, mas existem mistérios que ultrapassam o narrador. A ficção faz-se
de muitas pequeninas coisas reais que nós vivemos, que outros viveram e nos
contaram, e de outras que não vivemos e ninguém as terá contado. Como o
Jacarandá, os jornalistas do anos 40 que aparecem no livro, imaginativos (mais
imaginativos creio que os jornalistas de hoje), todos eles são uma invenção.
Personagens reais só os irmãos Alvela, os três galegos, fugidos da Guerra Civil
de Espanha, e no entanto deles apenas conhecia o nome e a pesada condenação que
sofreram.
Chegado
aqui, uma pergunta se impõe: o que me levou a escrever o livro? Ou, para manter
a imagem da centelha, por que soprei nas
cinzas do Crime do Bonjardim? Eu gostava
de perceber o medo, se o medo iria ter tudo o não. Por isso, o medo aparece ao
longo do livro como um animal. Um animal silencioso, um animal indefinido, de
reacção imprevisível. E aqui, para se testar o animal, surge a tortura.
Quando
cheguei à redacção do jornal O Primeiro
de Janeiro, meados dos anos oitenta, contaram-me uma história amarga de um
jornalista mais velho, de quem me tornaria amigo. Ele teria (o teria é meu, quem me informava era afirmativo),
ele teria rachado numa passagem pela
Rua do Heroísmo, pela Pide, e teria
denunciado outro camarada de profissão – até me disseram o nome da “vítima”,
Pedro Alvim. Nunca falei do assunto com o meu amigo, alegado delactor, que era
do PCP e continuava quando o conheci. Ele também nunca aludiu a esse seu
nebuloso passado. Mas vi nele um homem ferido pela amargura.
Que
a animal é o medo?
A
dada altura, em privado, o narrador pergunta: E se fosses tu? Suportarias a tortura,
cumpririas o dever revolucionário de não falar na polícia? O medo, confessa Martí
–, o controleiro nesta história, que rachou
perante o cavalo marinho –, o medo irrompe “animal
dominador. Julguei que o domava, abarbatou-me. O medo é um animal estranho.
Protege e rouba a coragem, no seu lugar, no lugar da coragem, fica o vazio. Sou
o homem mais infeliz à face da terra,
tenho vergonha de estar vivo”.
O
outro camarada, que cumpria o dever revolucionário, suportando os mais duros
suplícios, frente ao ex-controleiro, estando os dois presos na sede da Pide,
pergunta:
“Torturam-te
muito?
Muito.
O medo apossou-se de mim.
E
devorou-te.
Devorou-me,
esse animal silencioso.
Que
deste tu em troca?
A
minha dignidade.”
Este
livro é dedicado a quem ousou afrontar a ditadura. Um pequeno gesto de gratidão
aos que foram brutalmente torturados e não cederam. E também a alguns que não
suportaram a dor e involuntariamente terão traído. O medo, afinal o medo não teve tudo.
Um
jacarandá, mesmo crescendo na parede da
cela, apresenta sempre muito ramos. Falei-vos de um – há outros a descobrir.
* Texto lido na Universidade Popular do Porto, dia 2O de novembro,
no debate "O medo não pode ter tudo" a partir do romance Jacarandá, com a participação de Cristina Nogueira e Bruno Monteiro.
sábado, 31 de outubro de 2015
(carta de minha mãe)
*
com as trovoadas de maio comeremos peixe do rio
abandona a arte da subtileza e traz assobios para os cães.
os marmeleiros já têm melros e outros frutos
as mãos, que as tuas mãos regressem de monte a monte
Rui Duarte Mangas
com as trovoadas de maio comeremos peixe do rio
abandona a arte da subtileza e traz assobios para os cães.
os marmeleiros já têm melros e outros frutos
as mãos, que as tuas mãos regressem de monte a monte
Rui Duarte Mangas
sábado, 17 de outubro de 2015
[Quero decir paixón]
*
Un levián orballo, unha ledicia
e vai nacendo este milagre novo,
este medrar preciso do teu peito,
esta quentura fonda ou esta lúa
que esbara pola bris do meu ollar.
Com feble luz tremente, eu tezo fios
pra cántigas de amor, claras e inxeles:
e vou prendendo vivas labaradas
no agarimo profundo do teu seo.
Quero decir paixón, e digo noiva
con verba labourada en fino labio,
digo mencer tranquilo, serán quedo,
anceio de durmir no teu acougo.
Antón Avilés de Taramancos
O Tempo no Espelho
ediciós do Castro
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os dias imperfeitos,
poesia galega
quarta-feira, 14 de outubro de 2015
[corazón habitado]
MADRE: quiero olvidar
esta creencia sin descanso. Nadie
ha visto un corazón habitado:
por qué este pensamiento irreparable,
esta creencia sin descanso?
Estar desesperado,
estar químicamente desesperado,
no es um destino ni una verdad.
Es horrible y sencillo
y más que la muerte. Madre:
dame tus manos, lava
mi corazón, haz algo.
Antonio Gamoneda
Antología poética, Alianza Editorial
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Antonio Gamoneda,
os poemas da minha vida
domingo, 11 de outubro de 2015
DECIR QUE NO
Ya lo sabemos
es difícil
decir que no
decir no quiero
ver que el dinero forma um cerco
alredor de tu esperanza
sentir que otros
los peores
entran a saco por tu sueño
ya lo sabemos
es difícil
decir que no
decir no quiero
no obstante
cómo desalienta
verte bajar de tu esperanza
saberte lejos de ti mismo
oírte
primero despacito
decir que sí
decir sí quiero
comunicarlo luego al mundo
com un orgullo enajenado
y ver que um día
pobre diablo
ya para siempre pordiosero
poquito a poco
abres la mano
y nunca más
puedes
cerrarla.
Mario Bendedetti
Antologia poética, Alianza Editorial
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Mario Benedetti
segunda-feira, 5 de outubro de 2015
o amor em pousio
no amor em pousio
dorme uma tangerina
ainda verde
dorme uma tangerina
ainda verde
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os dias imperfeitos
sexta-feira, 2 de outubro de 2015
ACORDAI
Acordai
acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raiz
Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações
Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!
José Gomes Ferreira
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os dias do fogo
segunda-feira, 28 de setembro de 2015
DA LIBERDADE INTERIOR
*
Curvei-me
para beijar
as negras e bem polidas botas
do nosso amo
e então ele disse:
mais!
Curvando-me mais
senti
com prazer
a resistência
da minha coluna
que não queria estar dobrada
Feliz, verguei-me ainda mais
reconhecido ao nosso amo
por esta descoberta
da minha dignidade
e força
interiores
ERICH FRIED
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Portugal amordaçado,
resistir
quinta-feira, 24 de setembro de 2015
Enquanto há força
*
SONETO DO TRABALHO
Das prensas dos martelos das bigornas
das foices dos arados das charruas
das alfaias dos cascos das dornas
é que nasce a canção que anda nas ruas.
Um povo não é livre em águas mornas
não se abre a liberdade com gazuas
à força do teu braço é que transformas
as fábricas e as terras que são tuas
Abre os olhos e vê. Sê vigilante
a reacção não passará diante
do teu punho fechado contra o medo.
Levanta-te meu povo. Não é tarde.
Agora é que o mar canta é que o sol arde
pois quando o povo acorda é sempre cedo.
José Carlos Ary dos Santos
ps: com a ajuda dos 'velhos' neo-realistas também daremos a volta à mega-encenação que a direita portuguesa (e europeia, farinha do mesmo saco) está a fazer nesta campanha.
SONETO DO TRABALHO
Das prensas dos martelos das bigornas
das foices dos arados das charruas
das alfaias dos cascos das dornas
é que nasce a canção que anda nas ruas.
Um povo não é livre em águas mornas
não se abre a liberdade com gazuas
à força do teu braço é que transformas
as fábricas e as terras que são tuas
Abre os olhos e vê. Sê vigilante
a reacção não passará diante
do teu punho fechado contra o medo.
Levanta-te meu povo. Não é tarde.
Agora é que o mar canta é que o sol arde
pois quando o povo acorda é sempre cedo.
José Carlos Ary dos Santos
ps: com a ajuda dos 'velhos' neo-realistas também daremos a volta à mega-encenação que a direita portuguesa (e europeia, farinha do mesmo saco) está a fazer nesta campanha.
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um povo quando acorda é sempre cedo
quarta-feira, 9 de setembro de 2015
O escritor que cuidava a memória
Nos lançamentos
dos seus livros no Porto, mesmo não sendo ele apresentador televisivo ou
personagem das revistas cor de rosa, juntava pequenas multidões. E era uma
grande festa. Como nunca renegou a
matriz camponesa, de andarilho silvestre,
do homem bom rente à natureza, a festa terminava, altas horas da noite, com
pão, vinho e presunto. Pão, vinho e presunto
vindos da geografia da infância. Do planalto do Gostofrio, lugar real e
imaginário onde se movem todas as personagens da singular obra literária que
nos deixa.
Num gesto bíblico, Bento da Cruz quando saiu
a primeira vez da aldeia de Peirezes, Montalegre, rumo ao longe, rumo à grande
cidade, antes da curva da estrada, que apaga a imagem primordial, não se voltou para a rever. Seguiu caminho,
levava consigo, resguardado no lugar mais íntimo, esse mundo amargo e
maravilhoso. Inútil, pois, o olhar emocionado de quem se despede. Partiu para
ser monge beneditino, chegaria a noviço, mas trocaria a vida religiosa pela
medicina. A escrita, amante irregular (“só escrevo aos fins-de-semana”), essa,
acompanhá-lo-ia sempre.
Na geografia da infância, a mesma que Frei
Bartolomeu dos Mártires calcorreara em tempos remotos, havia de desenhar o
espaço mítico, exíguo e infinito, capaz de acolher a sua obra ficcional. A partir das terras de
Barroso, Bento da Cruz devolve-nos, em O Lobo Guerrilheiro, a memória da guerrilha galega antifranquista, terminada
a Guerra Civil de Espanha. Conheceu, muito novo, alguns dos “fugidos” à
barbárie franquista, dar-lhe-ia mais tarde a claridade da sua escrita límpida,
áspera e melodiosa. Genuína como o pão, o vinho e o presunto oferecido aos leitores,
trasmontanos e não só, como é evidente, que enchiam o salão nobre do Ateneu
Comercial do Porto, ou outros auditórios mais amplos, nos lançamentos dos
livros. Momento de festa e de partilha desse pequeno mundo que o candidato a
monge haveria de perseverar a vida toda.
No espaço
imaginário da narrativa de Benta da Cruz cabem as memórias dos guerrilheiros
galegos ou o amor entre mulheres. Como o
da Zé e da Lua, duas personagens de Filhas
de Loth, um dos romances mais provocadores, publicado em 1967, sendo
reeditado, várias vezes, a partir dos anos oitenta. Como observara Urbano
Tavares Rodrigues, no prefácio ao livro Contos
do Gostofrio (1973), as origens do ruralismo de Bento da Cruz estão
fundamentadas numa experiência direta, “vivida e observada, no que concerne ao
trabalho, ao amor, à amizade, à ambição, às carência mais duras, em suma à
complexa maranha das relações do homem com a natureza e com os animais.
Relações todas elas fortemente sensualizadas e sobre as quais o autor se coíbe
de lançar um julgamento moral”.
O romance
Planalto em Chamas (1963) marca a sua
estreia. Da longa carreira literária, sempre tolhida pelo ofício diário de
médico, ficam mais de 25 títulos, entre contos, romances, biografia, crónicas,
e trabalhos etnográficos como O Boi do Povo, editado em 2009 pela
Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. “Todos os meus livros
falam das chegas de bois”, da luta entre dois bois em campo aberto. “Era uma
coisa muito característica do Barroso”. Agora – dizia-me numa entrevista em
1989 – “está adulterada, vulgarizaram a chega. Antigamente era uma coisa séria!
Tinha um ritual próprio: os bois eram da povoação, toda a gente da aldeia se
empenhava no seu boi! Agora não; os bois são particulares… praticamente só o
dono do animal pode ficar emocionado e torcer pelo campeão”. Admirava Camilo, um dos autores portugueses que lia “com prazer
e com proveito”. Uma das suas últimas obras foi, precisamente, um ensaio sobre
o autor de Amor de Perdição nas
andanças pelo espaço imaginário de Bento da Cruz, publicado pela Âncora Editora
há dois anos – Camilo Castelo Branco Por
Terras de Barroso e Outros Lugares assim se chama o livro, que assinalou os
50 anos de vida literário do escritor.
Bento
Gonçalves da Cruz nasceu na aldeia de Peirezes, Montalegre, em 1925. Faleceu na
semana passada [25 de agosto], aos 90 anos.
Nos seus livros, vários deles distinguidos, há, como afirmara Urbano
Tavares Rodrigues, “incontestável denúncia da miséria, de todas as misérias, de
uma das mais frustes regiões do nosso país”. A grandeza do autor de O Retábulo das Virgens Loucas não se
fica, todavia, por esse “compromisso radical com a verdade”.
Conheci Bento da Cruz há mais de trinta anos.
O tempo. A serenidade do tempo é cruel mão invisível, sempre espalha marcas por
onde passa. Falo do tempo para lembrar a força maior do escritor, avesso à
efémera claridade mediática, que alguns em vão tentaram empurrar para o
silêncio. Ele foi um escritor do seu tempo. Do nosso tempo. Parte substancial
do tempo mais negro do século vinte português entra bruscamente na sua obra e
perdurará, estou certo, nos tempos que hão-de vir. Porque, melhor do que
ninguém, o autor de A Loba (Prémio de
Narrativa Galega e Portuguesa, em 1999) cuidou a memória como matéria
perecível. E na memória há palavras privadas de afeto. Precisam de respirar na
página, porque a rapidez do quotidiano padronizado as esquece – e palavra
esquecida nem lugar lhe é destinado em língua morta.
A obra de Bento da Cruz , sem dúvida, dá abrigo de alguns dos nossos mais genuínos vocábulos – que em lenta aluvião se dirigiam ao olvido – renascidos, devolvidos à comunidade falante, através de espantosas personagens que são outras das memórias levantadas do chão. O paciente ofício de limpar e enxugar a palavra – perdida nos matagais por pastores enamorados, contrabandistas esquivos ou outros transumantes em fuga que a roda do tempo amarfanhou – surge como uma das dádivas do escritor ao nosso tempo, às gerações vindouras. À Língua Portuguesa.
O diálogo vivo, musical, depurado (dir-se-ia de guião cinematográfico) irrompe como outro dos contributos do autor à nossa Literatura. É a fala genuína do povo, um povo concreto – marcado pela penúria, acossado por senhores terrenos e temente a Deus – que ao longo de séculos talhou a paisagem agreste.
A obra de Bento da Cruz , sem dúvida, dá abrigo de alguns dos nossos mais genuínos vocábulos – que em lenta aluvião se dirigiam ao olvido – renascidos, devolvidos à comunidade falante, através de espantosas personagens que são outras das memórias levantadas do chão. O paciente ofício de limpar e enxugar a palavra – perdida nos matagais por pastores enamorados, contrabandistas esquivos ou outros transumantes em fuga que a roda do tempo amarfanhou – surge como uma das dádivas do escritor ao nosso tempo, às gerações vindouras. À Língua Portuguesa.
O diálogo vivo, musical, depurado (dir-se-ia de guião cinematográfico) irrompe como outro dos contributos do autor à nossa Literatura. É a fala genuína do povo, um povo concreto – marcado pela penúria, acossado por senhores terrenos e temente a Deus – que ao longo de séculos talhou a paisagem agreste.
Um povo, no
entanto, capaz de grandes gestos de humanidade mesmo em situações adversas. A
solidariedade dos humildes, da pobre gente, será a mais sincera de todas.
Os livros de Bento da Cruz asseguram essa memória (matéria perecível) do povo de Barroso. A dignidade do povo dos grandes gestos de humanidade. O povo de Barroso que soube acolher os “fugidos”, os refugiados, quando “os maus ventos” uivavam do outro lado da fronteira. Uma memória da Guerra Civil de Espanha, revivida ou reescrita do lado de cá, é outro dos legados aos homens do nosso tempo e às gerações do porvir. Os dedos de uma mão chegam para contar os escritores que, antes dele, ousaram atear esse passado sangrento. O autor de Planalto em Chamas não temia a memória, ele conhecera, como já disse, guerrilheiros rojos e outros “fugidos”. Homens acossados pelos franquistas e pelos fascistas portugueses, homens sem pátria, com os sonhos libertários impedidos, privados de quase de tudo. Essa memória, enfim, jamais poderia ser olvidada. E não foi. Bento da Cruz, ao evocar a Guerra Civil de Espanha, trouxe à claridade a dignidade do seu povo. A dignidade em tempos conturbados é um tesouro incalculável: guardar silêncio, não denunciar a presença de “bandoleiros” (as autoridades portuguesas e os jornais designavam assim os refugiados de Espanha) era crime, e passagem certa pelas mãos dos torturadores da Pide, da Rua do Heroísmo, no Porto. E houve, por muitas aldeias barrosãs, homens e mulheres que não traíram: deram abrigo, pão, vinho e presunto a esses companheiros transidos. Ao transportar para a nossa Literatura a heroica dignidade das gentes da sua terra, nas décadas de trinta e quarenta do século vinte, Bento da Cruz distinguiu todos os portugueses que recusaram a tirania. E aqui reside outra originalidade do seu trabalho literário: voluntariamente localizada, é certo, mas os sentimentos são apátridas. Bento da Cruz foi o escritor do Barroso, um grande escritor português.
Os livros de Bento da Cruz asseguram essa memória (matéria perecível) do povo de Barroso. A dignidade do povo dos grandes gestos de humanidade. O povo de Barroso que soube acolher os “fugidos”, os refugiados, quando “os maus ventos” uivavam do outro lado da fronteira. Uma memória da Guerra Civil de Espanha, revivida ou reescrita do lado de cá, é outro dos legados aos homens do nosso tempo e às gerações do porvir. Os dedos de uma mão chegam para contar os escritores que, antes dele, ousaram atear esse passado sangrento. O autor de Planalto em Chamas não temia a memória, ele conhecera, como já disse, guerrilheiros rojos e outros “fugidos”. Homens acossados pelos franquistas e pelos fascistas portugueses, homens sem pátria, com os sonhos libertários impedidos, privados de quase de tudo. Essa memória, enfim, jamais poderia ser olvidada. E não foi. Bento da Cruz, ao evocar a Guerra Civil de Espanha, trouxe à claridade a dignidade do seu povo. A dignidade em tempos conturbados é um tesouro incalculável: guardar silêncio, não denunciar a presença de “bandoleiros” (as autoridades portuguesas e os jornais designavam assim os refugiados de Espanha) era crime, e passagem certa pelas mãos dos torturadores da Pide, da Rua do Heroísmo, no Porto. E houve, por muitas aldeias barrosãs, homens e mulheres que não traíram: deram abrigo, pão, vinho e presunto a esses companheiros transidos. Ao transportar para a nossa Literatura a heroica dignidade das gentes da sua terra, nas décadas de trinta e quarenta do século vinte, Bento da Cruz distinguiu todos os portugueses que recusaram a tirania. E aqui reside outra originalidade do seu trabalho literário: voluntariamente localizada, é certo, mas os sentimentos são apátridas. Bento da Cruz foi o escritor do Barroso, um grande escritor português.
texto publicado no JL
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O Lobo Guerrilheiro
quarta-feira, 2 de setembro de 2015
imigrante
o que passa no mediterrâneo, a indiferença pelo desespero dos refugiados,
pela morte de crianças, traz à lembrança o ghetto de Varsóvia e outros horrores da guerra.
a europa nada aprendeu com a história. assistimos ao naufrágio dos direitos humanos,
ao pouco que restava da democracia burguesa.
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