sábado, 28 de fevereiro de 2015

O Bicho


Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira

domingo, 22 de fevereiro de 2015

O crocodilo no meio do corredor

*

cerejas e chuva
no maio maduro,
josé, da alegria das aves.
os homens voam cabisbaixos.
o crocodilo no meio do corredor
nos degraus de laura
exibe as condecorações antigas

como chegou ele aqui
assim pesado, sem dissímulo?
mostra os dentes
mostra o gasto cavalo-marinho
impõe silêncio
na nação sob escuta.

vivemos a guerra, josé.
o velho crocodilo
avança: ele ou o caos.
para quê dois braços: ele come
um braço.
desperdício ter duas pernas: ele devora-nos
as pernas.
para quê esses e outros luxos,
diz o crocodilo.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O poema está cheio de sol

*

o poema está cheio de sol
entra pelas janelas abertas
do sangue frio das serpes
uma tangerina desliza
e marca a folha

já devem saber
a primavera é uma enxurrada
de verdura  pelos campos


porto, 1983

Árvore

*

a magnólia no verão oferece a sombra
no inverno ilumina os dias cinzentos

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Luísa Dacosta

 *


Uma vez, Luísa Dacosta disse-me que as flores
da magnólia carecem de aroma. Remoí a humilhação
em silêncio: eu, secreto enxertador de alporquia,
que multipliquei a minha magnólia branca pelos jardins
de amigos, desconhecia aquele natural mistério.
As flores da magnólia (inundam de alegria o declínio
do Inverno) estão privadas de odor, mas a sua luz
é aromática. A minha amiga Luísa Dacosta ensinou-me
outra coisa fascinante: o Português é língua
de afectos: o eu adiciona o tu, no presente e no futuro.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

[O que não se deixa dizer]

(...)

hei-de perpetuar o tumulto da claridade o arcaico
o que prevalece pelo inocupado
o que não se deixa dizer
na terra virgem de desastres
se caminhamos pelo imponderável
o simulacri ingenio
a teu lado distinguiremos
entre o caminho que irrompe
a voz dos oráculos
o que se oculta no poema
a permanência do inconclusivo

Como hesitei sobre a luz e a pedra


Quem ó donzelas

Alexandre Teixeira Mendes

A cegueira do Propício
 edições do buraco, 2005

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

[O pássaro na cabeça]

*
L'oiseau qui chante dans ma tête
Et me répète que je t'aime
Et me répète que tu m'aimes
Lóiseau au fastidieux refrain
Je le tuerai demain matin.


Jacques Prévert
Histoires

sábado, 7 de fevereiro de 2015

DO LADO DO VERÃO

*
Vinha do sul ou dum verso de Homero.
Como dormir, depois de ter ouvido
o mar o mar o mar na sua boca?


Eugénio de Andrade

O Outro Nome da Terra
ed. Limiar

A escrita florida

regresso aos trabalhos
da terra. planto alhos
alguns regos de batata.
as ervilhas de cheiro irão depois
as mesmas mãos das palavras
o mesmo ofício exercem
escrevendo na terra.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Acusação

*
Aos homens de sangue de Versalhes
em 1871


Ergue-te enfim,  Justiça vingadora!
Corusque em breve a tua espada ardente!
Eu vejo a Tirania omnipotente,
Enquanto ao  longe a Piedade chora...

Nasce rubra de sangue cada aurora,
E o sangue ensopa a terra ainda quente...
É o congresso de sangue o que esta gente
Abriu entre as nações, que o sangue irrora.

Ante o altar encoberto de Futuro
E ante ti, Vingadora, acuso e cito
Estes homens de insídia e ódio escuro!

Endureça minh'alma, e creia e espere,
Com um desejo estoico e infinito,
Só na Justiça que condena e fere!

Junho de 1871

Antero de Quental

Sonetos Completos
ed. Europa América